quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Um homem em busca do acorde perfeito

O texto abaixo é de autoria de Felipe Machado (Jornalista e guitarrista do Viper), em seu blog Palavra de Homem

Eu gosto muito do trabalho do Aguirre e o Felipe descreve muito bem a grande importância do guitarrista, além de fazer algumas relações com o Viper.

“Depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música.”
Aldous Huxley

A primeira vez que vi o Hélcio Aguirra tocar guitarra foi na Praça do Rock, um festival na praça da Aclimação que reunia algumas bandas de rock pesado que começavam a atrair a atenção do público paulista. Lembro que fiquei impressionado com o som da banda, o Harppia, já que no distante ano de 1984 era muito difícil ter acesso a instrumentos e equipamentos de qualidade. De bigode, cabelo comprido e inteiro de preto, Hélcio parecia uma versão brasileira do Tony Iommi, guitarrista do Black Sabbath.

Pouco tempo depois, o Harppia lançou o EP ‘A Ferro e Fogo’ e passou a ser uma referência: a música ‘Salem, a Cidade das Bruxas’, virou um hino para os headbangers brasileiros. Hoje a gente ouve o disco e percebe a precariedade com que éramos obrigados a conviver. Mas na época foi um marco, provavelmente o disco mais bem gravado daquela primeira fase do heavy metal brasileiro.

Com a popularidade do Harppia entre os músicos e fãs em alta, Hélcio começou a ficar conhecido não apenas como guitarrista, mas também como especialista em equipamentos. Não sei exatamente como ele começou a mexer com isso, infelizmente nunca conversamos sobre o assunto. E, mais infelizmente ainda, nunca conversaremos. Mas sei que ele começou a ficar famoso no meio como o ‘cara que mexia nos amplificadores’, ‘o cara que entendia de válvulas’, ‘o cara que transformava Tremendão em Marshall’ e outros elogios parecidos.

Alguns anos depois, conheci o Hélcio pessoalmente. Um cara gente fina, tranquilão. Entendi imediatamente que aquela personalidade combinava perfeitamente com a imagem de ‘cientista’, de pesquisador, justamente porque ele tinha a serenidade (e seriedade) necessária – além da paciência – para testar combinações de componentes elétricos à exaustão. Tudo isso pelo amor à música, à qualidade. Sem exagero, acho que o Hélcio ajudou a elevar a qualidade e o nível dos equipamentos de som fabricados no Brasil.

Em 1987, o VIPER entrou em estúdio para gravar o seu primeiro disco, e imediatamente recorremos ao mestre.

“Hélcio, você pode nos alugar um amplificador? Vamos gravar um disco!”, disse Yves em uma telefonema. E claro que a resposta foi sim. Foi a primeira de muitas vezes que recorremos ao ‘salvador’ Hélcio na hora que precisávamos de um som mais legal. Logo depois que o ‘Soldiers of Sunrise’ saiu, fomos convidados (que honra!) para abrir alguns shows do Harppia em teatros paulistanos. Foram shows históricos (pelo menos para gente), a oportunidade de dividir o palco com caras como o vocalista Percy Weiss, o baterista Tibério Correa (que era uma espécie de ‘Hélcio’ para a bateria, criando a melhor bateria brasileira na época, a Luthier) e o próprio Hélcio. É uma fase do rock brasileiro pouco conhecida do grande público, mas que, em algum momento, terá o reconhecimento que merece.

Em 1989, não sei se o Harppia ainda existia, mas o Hélcio já tocava em outra banda: o Golpe de Estado. Foi outra banda lendária na cena paulistana: enquanto o Harppia era um ícone do heavy metal tradicional, seguindo a escola Judas Priest e Saxon, o Golpe era assumidamente hard rock – e em português! Os riffs de Hélcio combinaram perfeitamente com a voz – e a personalidade maluca e carismática do vocalista Catalau. Juntando isso a uma das melhores cozinhas que já tocaram juntas no rock brasileiro (Nelson Brito no baixo e o incrível Paulo Zinner na batera), o Golpe já nasceu fazendo história. Teve vários hits no rádio (minha favorita é ‘Noite de Balada’, que o VIPER chegou a tocar em um show no Palace), shows lotados por onde passavam. Na hora de lançar o disco ‘Theatre of Fate’, surgiu a chance de fazer um grande show ao lado do Golpe. E é claro que aceitamos.

O show de lançamento do ‘Theatre of Fate’ foi no Projeto SP no dia 16 de março de 1990, justamente abrindo para o Golpe de Estado. Foi o nosso maior show até então, já que juntou nosso público e o do Golpe. Caiu exatamente no dia em que o então recém-eleito presidente Fernando Collor e sua competentíssima ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, decretaram o Plano Collor, o Confisco. Lembro disso porque foi motivo de uma grande discussão no camarim, com o sempre exaltado Catalau… se exaltando.

Depois disso, encontrei o Hélcio muitas, muitas vezes. A última foi no Estúdio Quorum, em Perdizes, estúdio que foi a ‘nossa casa’ durante muitos anos e para onde voltamos quando precisávamos fazer alguns ensaios ‘secretos’ antes da turnê de volta do VIPER. Conversamos sobre a outra banda dele, com o Ney, do Quorum, o experimental Mobilis Stabilis, sobre música em geral. Falamos sobre o rock brasileiro, amplificadores (claro) e efeitos para guitarras. Falamos sobre a volta do Golpe de Estado, sobre o videoclipe do novo single deles, ‘Rockstar’, que tinha participação do Dinho.

Ontem à tarde meu colega Marco Bezzi me enviou uma mensagem com a notícia da morte do Hélcio. Depois entrei na internet e vi: morreu em casa, dormindo, aos 56 anos. Pelo menos isso. Os deuses do rock and roll são mesmo muito brincalhões: o cara que passou a vida nos ajudando a aumentar o volume dos amplificadores até o volume 11, a explodir os alto-falantes Celestion das nossas caixas Marshall, a envenenar os nossos cabeçotes com distorções diabólicas… morreu em silêncio.

O que estaria sonhando o nosso querido Hélcio quando nos deixou? Nunca saberemos. Mas arrisco imaginar que ele estava sonhando com um mundo melhor, onde a música seria levada mais a sério. Um lugar onde as pessoas saberiam valorizar mais um homem que viveu em busca daquele som que não existe, aquele som que só existe na nossa cabeça: o som de um acorde perfeito.

Obrigado, Hélcio.

Fernando Cunha ©

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